Enfim sós



Ainda sinto o seu hálito fresco acariciando minhas faces rosadas, por meio de sua presença tão perigosamente perto de meu corpo em brasas. Meus olhos injetados de paixão, excitação e medo continuam ardendo em suas órbitas, permitindo apenas o alívio de poucas e milagrosas lágrimas que marcam a opulência de meu colo, ainda guardado e protegido pelo corpete sedoso de rendas e pérolas, única testemunha de minha luxúria.

O sol já está alto e preciso ser forte para enfrentar de cabeça erguida a vida. Estou tão farta e cansada das hipocrisias e mentiras que habitam a alta sociedade composta pelos seres ditos “elevados por sua inteligência e razão”, mesmo tendo sido lançada há pouco tempo nas garras ferozes da corte. Como gostaria de ser a borboleta que pousa delicada em minha janela, ornada por cortinas de um rosa tão claro que se confunde com as asas do ser que invejo. Quão fascinante seria me lançar em direção às rosas e papoulas do imenso jardim Lancaster, mas voando furiosamente rápido, para não ser aprisionada mais uma vez a essa descendência asquerosa.

Não pedi para ser Rose Lancaster, houve um enorme e nefasto engano! Renuncio mais uma vez ao nome, riquezas, terras e tudo o que a ganância impõe aos meus pais materialistas e supérfulos. O que eu realmente quero, não posso ter agora. Meu único e verdadeiro sentido de vida: Austin Haster. Que má sorte ser cigano, ou azar o meu de ter nascido nessa prisão de ouro? Abandono o mundo pela vida andarilha, quero paz.
Passo horas pensando e materializando sua fortaleza máscula, seu cheiro inebriante, seu olhar perigoso de fera faminta, que busca, a todo instante, me sondar e fiscalizar  cada ponto do meu existir, que se torna insípido sem a sua presença.

Papai me chama histericamente e diz que enlouqueci. Se paixão é loucura, então ele é são demais. Nunca pôde sentir esse fogo que corrói todas as nossas vísceras e nos faz querer mais e mais. Ele apenas critica e calcula o quanto irá ganhar com o lucrativo negócio de me casar com o velho Duque de Halthwood. Tenho pena dele. Se tornou amargo com o tempo e me olha não me vendo, pois é vazio e escuro em sua alma. Já mamãe, não tem presença e sua personalidade foi drenada por seu algoz companheiro. E agora, em mais uma demonstração de egoísmo humano, querem me assassinar, aniquilando e esquartejando minha presença e vontade, por meio de maquiavélica tortura, ao me vestir de branco e juntando minhas mãos às dos Sr.Halthwood, um coitado.

Austin me disse que o grupo levantará acampamento mês que vem e viajarão rumo à Paris, a cidade da luz. Que inimaginável e esplêndida aventura eu teria ao caminhar sem rumo pelas ruelas infestadas de cheiro ácido do champangne derramado pelos casais apaixonados, nitidamente enlouquecidos e dopados, pelo fluxo eletrizante que os domina após o beijo. Meu amor gitano irá me buscar durante a madrugada, e amanhã iremos nos casar, com a benção da lua e a permissão do sol.

A noite chega acompanhada por uma grande tempestade. Os raios iluminam a noite trevosa e marcam o meu rosto transfigurado pelo medo de não conseguir transpor os portões do palacete. “Aonde ele está? Me abandonou? Socorro!! Me deixem sair! Eu o amo, não o machuquem! Ahhhhhhhhh” . Assustada, abro os olhos grampeados pelas lágrimas e empurro bruscamente a mão que me quer tocar, banhada por um vermelho sanguinolento.

Os raios me ofuscam, é hora de partir. Pulo com os pés descalços e deixo a música me levar por entre as flores. Sorrio. Austin vem ao meu encontro e me embala em um ritmo suave e sensual. É primavera, dia de festa, mas precisamos nos preparar para o futuro. Somos andarilhos que deixam para trás a vida mundana, em direção ao paraíso, a sós, enfim.
                                                                                                                             Bruna Lupp

Comentários

  1. Lindo! Adorei o novo formato de texto! bjos Bento

    ResponderExcluir
  2. Noooossa, seus textos estão cada dia mais ricos e sensacionais!! Parabéns querida, sinto muito orgulho de suas obras! "Te segure" Clarice Lispector, sua concorrente é forte!!
    Beijinhos,
    Sonya

    ResponderExcluir
  3. Minha linda e querida Bruna, o texto é um show!
    Amei, pude até sentir o cheiro das flores...
    Vc pode e deve escrever romances assim. Tb sinto
    muito orgulho de vc, viu? Continue desenvolvendo
    esse seu talento maravilhoso, e nos brindando com
    textos, pensamentos e livros. Bjs,
    Lilly

    ResponderExcluir
  4. Bruna,
    Vc é uma romancista!

    Escreva um livro nesse estilo, e vai virar um Best seller.
    Fiquei toda arrepiada, menina! Parabéns, adorei. Bjs,

    ResponderExcluir
  5. Belíssimo!!! =)

    ResponderExcluir
  6. Puxa, Bruna, finalmente!!! Devo este comentário há um bom tempo, não?

    Então, vamos logo ao que interessa. As duas coisas que mais gosto no seu texto é que ele consegue se situar no tempo (da corte) e espaço (a Inglaterra dos Lancaster), sem mencionar data e local. Esse é um exercício que me deu vontade de fazer.

    A impressão que me deu também é que seu texto tem um enredo que poderia ser enxertado ou foi inspirado em algum romance ou peça conhecida. Eu não sei qual é, mas me pareceu isso.

    Agora, sobre o ponto de vista de construção literária, tem um monte de coisa para discutir. A questão do erotismo do parágrafo inicial, por exemplo. O erotismo é muito difícil abordar do ponto de vista psicológico como você fez.

    Em geral, uma boa cena erótica, envolve mais atitude do que emoções. Quanto mais se descreve os gestos de um par amoroso, mais erótica fica a cena. Expressões como "ardendo em suas órbitas" e "opulência de meu colo" põe o erotismo no intelecto, deixando a gente pensando nas imagens, e não propriamente no corpo.

    Falando nas expressões que você usou, fiquei pensando na natureza da arte da literatura. Tanto na poesia quanto na narrativa, o desafio é transformar imagens e expressões frasais conhecidas e alguma coisa nova e original. O artista sempre traz com o seu trabalho uma versão do mundo segundo ele, apenas ele. Essa versão ninguém inventou antes.

    Pra ser franco, tem uma coisa no seu texto que me incomoda. Há um excesso de adjetivos (garras ferozes, corpete sedoso, enorme e nefasto engano, vida andarilha e por aí vai). Geralmente, os adjetivos emperram, sobretudo, as narrativas.

    Eu me lembrei (e copiei da internet) de uma colocação de Drummond que explica o que estou tentando dizer:

    "À medida que envelheço, vou me desfazendo dos adjetivos. Chego a crer que tudo se pode dizer sem eles melhor talvez do que com eles. Por que “noite gélida”, “noite solitária”, “profunda noite”? Bastava ”a noite”. O frio, a solidão, a profundidade da noite estão latentes no leitor, prestes a envolvê-lo, à simples provocação dessa palavra “noite"

    Aproveitando o assunto da velhice, repare que ser velho é pouco para tornar o Duque de Halthwood em uma pessoa repugnante. Se aqui e ali, você comentasse mais detalhes repugnantes, a decisão de não casar seria mais simpática e mais facilmente apoiada pelo leitor.

    Acho também que a narradora do texto precisa ser mais caracterizada como uma jovem culta, lida e inteligente. Na época da corte, a maioria das mulheres era analfabeta. Em sua narração, Rose Lancaster usa palavras muito sofisticadas para uma jovem do seu tempo. Então, se ela explicasse que lê, teve um tutor muito sábio ou coisa assim, seria mais verossímil.

    Na verdade, o que comento aqui não é propriamente o seu texto. São suas qualidades e seus defeitos que nos levam à discussão da literatura em si. Então, vamos discutindo, vamos discutindo...

    Bjs,
    Jorge

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe suas idéias sobre o texto: dicas, sugestões, críticas ... obrigada!

Postagens mais visitadas