O Reflexo
Beatrice
nasceu em um berço de ouro, como se costuma dizer. Com pais jovens e
presentes em sua vida, nunca lhe faltou nada, desde a boneca até a
história das princesas antes de dormir. Era a luz de sua casa, a
razão dos sorrisos e choros de emoção.
A
jovem de rosto rosado, cabelos sedosos e escuros como a noite,
encantava a todos com sua beleza angelical. Mas sua formosura não se
resumia ao corpo delgado e face harmoniosa. Beatrice trazia consigo
um amor divino pelas criaturas. Seus gestos tranquilos
emanavam todo o cuidado e gentileza com o próximo. Que doçura brilhava de seu olhar.
Amava e era amada.
Os
anos foram passando e a jovem crescia como esperado. Num momento como
qualquer outro, ao passar pelo quarto, deu um grito: seu
rosto sumira! não conseguia se enxergar, embora estivesse lá.
As
lágrimas corriam de seus olhos e manchavam sua roupa. Estava
desolada. Sua mãe não entendia, pois tudo lhe parecia em perfeito
estado. Será que sua filha enlouquecera? Ou ela que não aceitava
alguma realidade devastadora?
Diversos
médicos foram consultados, exames, rezas, novenas, tudo que era possível e conhecido havia sido
realizado por Beatrice para se ver novamente. Quando o desânimo a
alcançou, desistiu e resolveu conviver com a dor de não se
reconhecer.
Já
não lembrava de como era e vivia de um passado encantador e, de
certa forma, distante do "agora". Passou a se alimentar
das recordações de fotos e da memória de seus pais, amigos e
familiares a descrevendo: de como era linda (ainda é), que
fisionomia ! Cansada de forçar uma imagem que não lhe era mais
natural, se absteve de toda e qualquer busca por isso. De certa
forma, a quem eles amavam? Uma projeção da perfeição ou quem ela
realmente era? Esses questionamentos passaram a ser recorrentes em seu dia a dia.
Como se
descrever quando não se enxerga? Nos vemos com os nossos olhos ou
por meio da percepção alheia? Diversas madrugadas e reflexões a
fizeram entender que NÃO, "sou eu quem devo me delinear, os
outros não me farão felizes e nem quero isso", concluía. "Sou
um ser humano com uma imensidão dentro de mim. É um pecado me
limitar". Confiante com esse sentimento, com essa força
interior, adormeceu em seus devaneios.
Uma
forte chuva acorda os cidadãos da cidade, raios e trovões dão o
"bom dia" aos que dormiram demais nesta manhã. Beatrice
está mais do que pronta para iniciar sua rotina. Inspirada, veste a
melhor roupa para impressionar a si mesma. Desce as escadas do
segundo andar para encontrar seus pais na sala de estar.
O
silêncio impera no ambiente. "Que estranho", pensa.
Procura, procura e nada. Aonde estão? Olha ao redor e vê sua mãe
passando a sua frente. Ela não lhe vê. As cenas desenrolam como num
filme de Hollywood. Tudo distante, como se ela fosse uma mera
expectadora. Uma jovem para a sua frente. Sorri. "Consegue me
ver?", diz. e a jovem responde que "Sim". Era ela, a
nova e verdadeira Beatrice, que conseguia se ver no espelho
novamente.
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